Rogério Christofoletti: “A crise no jornalismo é dinâmica, complexa, inédita no seu alcance e gravidade. O setor só tem uma escolha, enfrentá-la”

Professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rogério Christofoletti é referência nos estudos sobre ética da imprensa, crítica de mídia e crise do jornalismo.

É também um dos fundadores do objETHOS (Observatório da Ética Jornalística),  iniciativa de pesquisa, acompanhamento e monitoramento da ética praticada por jornalistas e meios de informação que nasceu em 2009 e é formada por pesquisadores de cinco universidades brasileiras (UFSC, UFF, UFPR, UFPel e Ielusc). 

Autor de dezenas de artigos científicos, Christofoletti lançou seu terceiro livro em 2019. “A crise do jornalismo tem solução?” (Ed. Estação das Letras e Cores) discute o financiamento da indústria e  analisa remédios e soluções viáveis para o setor. Para o pesquisador, a dificuldade de gerar receita para o jornalismo no ambiente digital é só um dos aspectos do desafio complexo que abala a indústria midiática hoje. 

O professor conversou com o NativoJor sobre as barreiras que dificultam uma mudança efetiva na indústria midiática, como o surgimento de nativos pode ser uma resposta à crise da profissão e o que falta para pagar a conta do jornalismo digital.

Na pesquisa para este projeto, me deparei com um artigo escrito pelo professor Thomas McPhail. Publicado em 1980, o texto afirmava: “A substituição do papel por meios eletrônicos é central na Era da Informação. Nenhuma indústria será mais afetada que a indústria jornalística. Se não agirmos agressivamente agora, seremos vítimas de um choque no futuro”. Hoje, 40 anos depois, você diria que o jornalismo realmente está sentindo esse choque preconizado por McPhail? 

O choque tecnológico mais forte não é propriamente abandonar o suporte físico do papel. Até porque jornais e revistas impressos —  assim como livros impressos —  continuam a existir e a disputar atenção com versões eletrônicas desses produtos. Este é um fenômeno que já se estende por vinte anos pelo menos e que tem como eixo central o surgimento e a expansão da internet. A partir disso, veículos e profissionais precisaram não apenas se adaptar a algo novo, mas a criar novas linguagens, procedimentos e rotinas. E também é importante entender que esses mesmos profissionais e veículos não tiveram que se adaptar a algo já sedimentado e bem definido. Isso não existia, e foi sendo construído ao longo dos anos. Não é à toa que o primeiro movimento dos jornais e revistas no engatinhar da digitalização foi fazer a mera transposição dos conteúdos nessas novas bases. Depois, com o tempo, fomos experimentando as potencialidades digitais (em áudio, vídeo, imagem animada, etc…), desenvolvendo práticas específicas (como se preocupar com a circulação e recirculação dos conteúdos em redes sociais e outras plataformas, por exemplo) e lapidando linguagens e rotinas próprias do digital. O que o professor McPhail escreveu há 40 anos parece uma eternidade, mas é porque caminhamos muito nesse tempo todo. Esse caminhar foi errático, hesitante, cheio de percalços, e não estou certo de que tenhamos chegado ao nosso destino final.

“Parte considerável dos empresários da indústria jornalística abomina inovação. Não experimentam por receio, por falta de ousadia, por conservadorismo. É melhor contar com os novos que já temos na cesta que conhecemos, pensam. Este comportamento é meio suicida em algumas épocas da história, e foi assim para alguns”

Na sua opinião, a indústria jornalística errou ao não dar a devida atenção ao digital nos últimos anos? Por que isso aconteceu?

Acho que não se pode dizer que foi apenas um erro de avaliação. É fácil demais apontar o problema agora quando ele já se instalou na nossa sala, se apossou do controle remoto e sentou na nossa poltrona! É mais complexo. A crise atual dos meios impressos se deve a erros de avaliação, de descaso e despreparo técnico, de medo de inovar e da incapacidade comum de não prever transformações tão disruptivas em meio a elas. Imagino, por exemplo, que lá no século XV os impressores que não quiseram a usar os métodos do Gutenberg pensavam que estavam no caminho certo, e que seus negócios não corriam riscos. Imagino também que outros impressores que seguiram o alemão não pensavam estar diante de uma revolução tecnológica pra valer, que levaria à criação da imprensa e do mercado editorial, e que levaria à necessidade de expansão das escolas e de formas de letramento complementar.

É bem verdade que parte considerável dos empresários da indústria jornalística abomina inovação. Não experimentam por receio, por falta de ousadia, por conservadorismo. É melhor contar com os novos que já temos na cesta que conhecemos, pensam. Este comportamento é meio suicida em algumas épocas da história, e foi assim para alguns. Não foi apenas o caso de a indústria não dar atenção às potencialidades digitais. É mais complexo, e isso tem a ver com mudança na cultura da indústria. Não se muda a cultura rápida e facilmente. Não se muda uma indústria de um dia para o outro. Há muita coisa em risco. No caso dos meios impressos, algumas questões muito sérias se colocam: o que vamos fazer agora com esse maquinário caríssimo que temos e que nos servia para imprimir tanta coisa? Para quem vamos repassar isso? Quem vai se interessar em comprar algo caro, grande e que pode se mostrar obsoleto num futuro não tão distante? Se não vamos imprimir mais, como faremos nosso produto chegar ao nosso público? Qual será nossa cadeia produtiva? vamos conseguir garantir uma posição de destaque e controle na nova cadeia produtiva? Vamos conseguir manter os mesmos índices de rentabilidade de antes? Temos mão-de-obra capacitada para essas mudanças? Se não temos, como vamos qualificá-la? Em quanto tempo e a que custo? Está vendo como é complexo?

Nos últimos anos vimos dezenas de redações fechando, uma onda de passaralhos (jargão para demissão em massa de jornalistas) e também o nascimento de diversos veículos nativo digitais. Na sua opinião, por que isso acontece agora com mais força?

Vemos isso com mais força agora basicamente por duas razões: 1) Temos mais dados sobre o setor e isso nos permite fazer comparativos e acompanhamento de métricas; 2) Efetivamente, as verbas publicitárias que circulavam nos meios convencionais —  não só os impressos, mas também a radiodifusão —  se fragmentaram, e esse fracionamento levou os anunciantes a buscar outras vitrines. Com menos dinheiro no setor, o setor se ressente e não consegue manter de forma perene algumas operações. Ao mesmo tempo, os proprietários dos meios não se adaptam à nova realidade e mantêm suas expectativas de ganho muito altas. Quando elas não são alcançadas, simplesmente, interrompem, fecham os negócios, demitem, extinguem títulos, tiram o fio da tomada. A migração dos recursos que sustentavam essa indústria para outros lugares desestabiliza o setor, causa incertezas e decisões precisam ser tomadas. Fechar as portas, nem sempre, é a melhor decisão. Às vezes, é, pois a situação é alarmante. Cada caso ajuda a entender um pouco da crise, mas ela é dinâmica e complexa. E quando a gente coloca a coisa em perspectiva, numa escala planetária, a complexidade chega a um nível difícil de compreensão e manejo.

O que podemos entender por “crise no jornalismo” (que você traz no título de seu livro)?

A crise no jornalismo não é apenas um problema financeiro. Sim, o modelo preponderante, a venda de espaço publicitário, que sustentava a indústria se enfraqueceu, mas não morreu. A crise de sustentação é grave e aguda, mas ela é apenas parte de uma crise mais ampla, que afeta a credibilidade dos meios, que afeta a ética das empresas e dos profissionais, e que também atravessa a própria governança interna dessas organizações. É uma crise dinâmica, complexa, inédita no seu alcance e gravidade. O setor só tem uma escolha: enfrentá-la. Se não fizer isso, vai perecer. Muitos já estão fazendo, mas um dos grandes entraves é o fato de que não há solução mágica e única, e que isso pode demorar algum tempo.

“Se antes ele era majoritariamente subsidiado por anunciantes, agora a conta não fecha e é necessário que o público também ajude a sustentar esta prática”

Como você enxerga a atuação dos veículos nativos digitais que surgiram nos últimos anos? Acredita que são modelos sustentáveis?

O surgimento de muitos desses veículos significa a reação da indústria ou de setores jornalísticos à crise. Vejo com bons olhos, e algumas dessas iniciativas são muito exitosas e importantes. Nos Estados Unidos, alguns nativos digitais já se mostram não só vigorosos em termos de sustentação financeira quanto inovadores nas práticas jornalísticas e nos pactos com seus públicos. Na Europa, também há bons movimentos, e na América Latina temos meios como La Silla Vacía y El Faro, que são bem atuantes e cada vez mais influentes. No Brasil, temos Agência Pública, Nexo e The Intercept Brasil, que demonstram convicção jornalística para investigar, versatilidade de formatos e gêneros, proximidade com seus públicos, rigor ético e penetração crescente junto à sociedade. Alguns já se mostram bem sustentáveis, como é o caso do The Intercept Brasil que recorreu a um sistema de assinaturas que ultrapassou suas metas iniciais muitas vezes. Nexo, pelo que informa sua cúpula, deve se tornar sustentável ainda este ano, e esses casos podem nos ajudar a entender por onde passa a estrada da sustentabilidade no mercado nacional. Ainda é muito, muito difícil, mas se não tentarmos saídas, ninguém fará isso por nós.

Muitos deles utilizam modelos de financiamento não são unicamente pautados na venda de “informação”, mas na troca de experiências, no entendimento de que apoiar o jornalismo é necessário nessa sociedade. Esse pensamento é mais atual? O que nos levou a ele?

Este pensamento evolui no sentido de entender o jornalismo como algo que seja também uma responsabilidade do público. Se antes ele era majoritariamente subsidiado por anunciantes, agora a conta não fecha e é necessário que o público também ajude a sustentar esta prática. Antes, uma conta básica no jornalismo impresso era a seguinte: vendas de exemplares avulsos e assinaturas custeavam as despesas com papel e tinta basicamente. Os demais custos de produção e distribuição eram cobertos pela venda de anúncios publicitários. Com o fechamento parcial das torneiras, foi necessário repactuar. Eu vejo essa ideia como uma tentativa nessa direção. Os meios abrem um canal de diálogo mais honesto com seu público: queremos oferecer jornalismo de verdade, e ele é importante para as suas tomadas de decisão. Não temos como bancar isso sozinho. Você estaria disposto a nos ajudar com isso? Quer se tornar um membro de nossa comunidade? Quer receber mimos ou outras recompensas e formas de agradecimento neste sentido? Acha isso importante?

Vejo esta tendência com muito interesse porque ela dá uma dimensão potencialmente mais comunitária para o jornalismo. Acho que – em escalas menores – podemos investir mais nisso, e fortalecer laços mais permanentes (e não só ocasionais) entre quem faz e quem consome informação, em prol do desenvolvimento de um certo lugar ou comunidade, ou quem sabe em torno de causas, como advocacy journalism para questões de gênero, de igualdade racial, preocupações ambientais ou com a insegurança pública. 

Na sua opinião, quem deveria “pagar a conta” do jornalismo digital? E quem paga, hoje?

Depende do meio, de onde ele opera, do seu público, da dimensão do veículo, enfim, de muitos fatores. Penso que é muito saudável (e até necessário) envolver o público nessa história. Atrair financiadores dos setores produtivos também não pode ser descartado, e desenvolver mecanismos atraentes e eficazes de doação também me parecem interessantes. O financiamento coletivo pode funcionar em algumas situações, mas entre as suas fragilidades está o fato de que não é perene, é episódico, vale por campanha… Os governos também poderiam ajudar a indústria, seja atuando como anunciantes, destinando linhas de financiamento para camadas mais fragilizadas do setor, e também desenvolvendo leis e programas que contribuam para a destinação de recursos públicos e privados para a manutenção desses negócios. Além disso, penso que os governos —  municipais, estaduais e federal —  deveriam investir maciçamente na criação e manutenção de estruturas jornalísticas públicas —  e não estatais —  para fomentar o setor, criar empregos e oferecer à sociedade informação a qual ela tem direito. Insisto: criar sistemas públicos de comunicação e de jornalismo não devem ser armas políticas, mas sobretudo maneiras de satisfazer o direito à informação que os cidadãos têm, o que contribui para suas emancipações.

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