Ramón Salaverría: “A mídia é refratária à mudança, e a universidade ainda mais”

O espanhol Ramón Salaverría é uma das maiores referências mundiais nos estudos de ciberjornalismo, convergência midiática e meios digitais. O professor titular e vice-reitor de Pesquisa da Universidade de Navarra (Espanha) têm oito livros publicados e contribuições em mais de 200 publicações científicas sobre a temática.

Também é subdiretor do Centro de Estudos da Internet e Vida Digital da universidade compõe o Conselho Diretivo da SembraMedia. De 2014 a 2015, foi professor convidado na Universidade do Texas (EUA). 

Nos últimos anos, Salaverría tem dedicado um esforço particular na investigação sobre os nativos digitais e na criação de uma tipologia de classificação para estas iniciativas que nasceram no ambiente digital. 

O pesquisador esteve no Brasil em setembro para apresentar a palestra de abertura do 42º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (INTERCOM 2019). Sua fala fez uma breve introdução à complexidade do ecossistema digital e à crise de credibilidade e de estrutura que aflige a indústria jornalística e o consumo de informação como um todo. Ele também reafirmou a responsabilidade da academia em promover pesquisas práticas que consigam reverter estes problemas e deu dicas de tópicos que ainda estão defasados em termos de investigação e aplicação científica.

Durante o evento, Salaverría falou ao NativoJor sobre as vantagens e desafios dos nativos digitais frente à mídia de legado, como a inovação do ambiente digital passa prioritariamente pela inovação na formação dos profissionais e como a aproximação com a audiência é essencial para a sustentabilidade deste negócio.

Na sua palestra, você afirmou que o jornalismo precisa voltar a ser visto como um serviço público, ganhando apoio da sociedade. Para os nativos digitais, eu entendo que isso seja mais difícil, pois eles tem que fazer com que o público conheça sua marca. Além disso, eles disputam com veículos muito grandes e dependem de fontes muito diferentes de monetização para sustentar seus negócios. Como eles tem tentado conseguir esse apoio? 

Você afirma que essas mídias nativas digitais seguem um caminho mais difícil, e é verdade. Mas tem alguns elementos que são mais fáceis, atualmente, do que aqueles que respondem à grande mídia. Isso é basicamente uma questão de reputação. A reputação das novas mídias nativas digitais é melhor que a reputação da grande mídia jornalística, que vem sofrendo um grande problema nesse sentido. Existe uma desconfiança muito maior a respeito das mídias que a respeito de jornalistas. E geralmente, o respeito profissional é mais voltado para pessoas em particular do que para as organizações. Na Espanha, aconteceu um processo bastante interessante. Os jornalistas, graças às redes sociais, ganharam um reconhecimento de sua marca pessoal. E a partir desse reconhecimento pessoal, construíram mídias que usaram essa reputação pessoal em favor do novo projeto jornalístico. Se os jornalistas que coordenam as mídias nativas digitais são capazes de estabelecer essa relação pessoal de geração de comunidade, de afinidade nos objetivos, se torna muito mais fácil convencer essas pessoas a contribuírem para os investimentos econômicos de seus projetos. Então eu acho que a chave aqui é basicamente uma construção de reputação na construção de credibilidade, baseada no reconhecimento pessoal. 

Como essa noção do jornalismo como serviço público afeta o modelo de negócio? Significa construir um modelo que não seja baseado no lucro?

Não. Você precisa ter lucro. E em alguns casos esse lucro é reinvestido na própria mídia ou em outras organizações que retribuem o lucro a acionistas. Eu acho os dois modelos perfeitamente válidos. Mas quando falo para se colocar o negócio debaixo da noção de “serviço”, significa que vai chegar um momento em que você terá que reportar uma notícia que afeta negativamente organizações que investem em publicidade ou até podem ser parte da propriedade da organização. Nesses casos, você realmente terá que definir sua credibilidade. Tem um caso muito interessante nos últimos anos que é o do Washington Post. No ano de 2013, o Post foi comprado por Jeff Bezos, proprietário e fundador da Amazon. Poderíamos dizer, então, que o jornal passou a ser um veículo da Amazon. Mas não é assim. O que aconteceu foi que o Bezos, uma pessoa que tem muito dinheiro, contratou alguns dos melhores jornalistas dos EUA, caracterizados pela qualidade profissional e a independência. E então, esses jornalistas começaram a tratar de todo o tipo de temas, inclusive informações que afetavam negativamente a própria Amazon. É nesses momentos que você realmente demonstra se você é uma mídia jornalística ou institucional. E realmente, eu assisti a uma palestra do diretor do Post, e ele disse que Jeff Bezos não fez nenhum tipo de intromissão nas decisões editoriais da mídia. É isso que significa colocar um serviço público acima do negócio.

O financiamento através de fundações também está começando com mais força no Brasil. Do ponto de vista dessas fundações, por que financiar o jornalismo?

Eu acho que esse modelo de financiamento deveria ser de curto prazo. Deveria servir para lançar um projeto, para os primeiros passos. Mas não deveria ser o sistema perpétuo de funcionamento. E eu acho que essas fundações, se são fundações orientadas para o desenvolvimento social, da democracia, se isso faz parte dos princípios vetores dessas organizações, esses investimentos são perfeitamente lógicos. Se você está em um entorno de recorte de liberdades políticas, como na Venezuela, Cuba, Nicarágua, é perfeitamente lógico que exista algumas organizações que afirmam “vamos tratar de sustentar o trabalho de jornalistas que de outra maneira não teriam condições para poder exercer seu trabalho”. Mas deveria ser um apoio a curto prazo. Se uma fundação fornece apoio durante décadas a um projeto, aí eu já começaria a suspeitar.

Você vê, observando os nativos digitais, algum modelo de financiamento que está despontando como o mais efetivo?

O modelo da “Mediapart (França)”, do “Eldiario.es” (Espanha), que são baseados na contribuição econômica, alguns chamam de assinantes, outros de sócios. Nestes, os contribuintes não só estão só oferecendo uma assinatura, há também uma certa afinidade com o projeto. E esse é o tipo de relação que eu falava no começo. Estabelecer uma relação pessoal, um conceito de comunidade, e objetivos comuns. Pois o veículo, além de uma fonte de informação, é um caminho para aumentar as liberdades.

“Se os jornalistas que coordenam as mídias nativas digitais são capazes de estabelecer essa relação pessoal de geração de comunidade, de afinidade nos objetivos, se torna muito mais fácil convencer essas pessoas a contribuírem para os investimentos econômicos de seus projetos”

O que as redações podem fazer para atender a essa nova relação com o público? Como deveriam ser as redações de nativos digitais?

Jornalistas muito abertos. Que estão constantemente escutando o que acontece nas redes. Não simplesmente as notícias, mas também as respostas por parte dos leitores. Organizações que estão constantemente incorporando as novidades e oportunidades tecnológicas. E também organizações jornalísticas que tenham uma vontade constante de experimentação narrativa. Eu acho que, combinando esses três elementos, você tem condições para se ter um projeto bem sucedido.

“Falta uma certa garantia de sustentabilidade a longo prazo. Falta um maior reconhecimento de marca. E falta uma capacidade de expressar conteúdos em narrativas diferentes. Geralmente acontece que as mídias nativas digitais são muito boas em informação, mas fracas em formatos”

E isso tem sido feito? 

As mídias, não só as nativas digitais, precisam desenvolver mecanismos e procedimentos para poder agir nesse cenário que é quantitativamente muito grande. E quanto mais bem sucedido, mas difícil se torna. Eu acho que um dos caminhos, pode ser a profissionalização dos jornalistas. Em termos de saber checar adequadamente a informação, desenvolver uma série de novas técnicas para identificar quando uma informação é relevante e quando é secundária ou suspeita. Além desse reforço profissional, também acredito que deve haver um apelo pela contribuição da própria comunidade. Convidar os usuários a serem pessoas que contribuem para a melhora na qualidade da informação. Como: através da metamoderação dos comentários, das respostas. Que seja, por exemplo, os próprios usuários que digam qual as pautas ou propostas mais relevantes. Que eles sugiram temas a serem cobertos, enfoques que podem ser aproveitados. Esse tipo de moderação e colaboração da comunidade é provavelmente um dos grandes desafios que a mídia jornalística não conseguiu resolver. Até os próprios nativos digitais são mídias unidirecionais. Elas afirmam que são interativas, mas muitas vezes seguem sendo unidirecionais. Respondem alguns dos leitores, e já fazem bem mais que a mídia tradicional, mas muito mais pode ser feito. 

Os nativo digitais encontraram no nicho, na especialização de alguma cobertura, um mercado em potencial. Você vê nisso uma maneira de centralizar esforços ou há uma tendência pela segmentação do jornalismo?

É claramente uma tendência. E é um dos grandes problemas da grande mídia, que não pode abdicar de determinados tipos de coberturas, o que lhes obriga a cobrir muitas frentes diferentes. E não conseguem fazer tudo bem. Então, uma das chaves do sucesso da mídia nativa digital é a boa escolha dos temas que querem trabalhar de maneira aprofundada. E é uma das características das mídias nativas digitais mais bem sucedidas no mundo.

Você afirma também que inovação não tem a ver apenas com tecnologia, mas com os próprios jornalistas. Diante disso, você acha que falta inovação na formação desses profissionais?

Exatamente. É uma conclusão natural desse assunto. A mídia é refratária à mudança, e a universidade ainda mais. Aqui temos muitos exemplos que professores que seguem transmitindo os mesmos conceitos, e as mesmas formas de comunicá-los há décadas. Assim como pedimos uma vontade de inovação na mídia, e um câmbio na estrutura profissional da comunicação, eu acho que deveríamos fazer primeiro a nossa própria tarefa. Eu acho que já conseguimos alguns espaços. Eu consigo comparar o que acontecia nos anos 90, começo dos anos 2000, e agora. E as coisas evoluíram. Mas há um caminho longo pela frente. 

Estamos no meio de uma crise de credibilidade da mídia, reforçada por declarações contra a imprensa de governantes de diversos países, inclusive no Brasil. Ao mesmo tempo, também estamos vendo uma resposta, há uma busca pela qualidade jornalística pela defesa da democracia. Como você vê essa tendência?

Vou fazer o papel de advogado do diabo. Eu acho que tem um perigo para o desenvolvimento futuro do jornalismo o fato de que algumas dessas mídias nativas digitais interpretem que o caminho está em conseguir fãs. Porque se você só está contando aquilo que os ouvidos do seu público quer ouvir, você não está fazendo um bom jornalismo. Você vai contentar essas pessoas. Na Espanha, tem público que começa a questionar mídias que têm uma orientação ideológica marcada quando elas mudam um pouco. Eles cobram: “Como você informou desse jeito? Por que entrevistar essa pessoa?”. Assim, mais uma vez, acho que precisamos de jornalistas independentes. Pessoas que são capazes de tocar em um assunto com base em critérios estritamente profissionais, não ideológicos. É aí que eu acho que temos um desafio grande.

O quão distante estamos de um ciberjornalismo maduro? Que consiga ser sustentável, falando mais especificamente de nativos digitais?

Falta uma certa garantia de sustentabilidade a longo prazo. Falta um maior reconhecimento de marca. E falta uma capacidade de expressar conteúdos em narrativas diferentes. Geralmente acontece que as mídias nativas digitais são muito boas em informação, mas fracas em formatos. Acho que na medida que melhorarem isso, vão se fortalecer.

Você vê no futuro um convívio entre grandes jornais e nativos digitais?

Eu acho que nesses 25 anos houve uma relação tormentosa entre mídia não digital e mídia digital. Mas acho que nos próximos anos essa briga migrará para nativos digitais contra não nativos digitais. Vai começar uma competição entre as grandes marcas tradicionais e as novas. Pois muitas delas não estão sabendo se reinventar. Aqui no Brasil, claramente não aconteceu. Ainda não se pode comparar nem de longe, mas e se acontecer? Na Espanha, está acontecendo. Alguns nativos já têm um reconhecimento de marca que supera os tradicionais. 

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