A busca da Gênero e Número pela sustentabilidade sem fechar conteúdos

Fundada em 2016, a Gênero e Número é pioneira na América Latina na cobertura sobre gênero orientada por jornalismo de dados. Sediada no Rio de Janeiro com uma equipe enxuta de dez pessoas, além de alguns colaboradores externos, a organização foi fundada e segue sendo construída e pensada predominantemente por mulheres. 

Todo o conteúdo do veículo, que trabalha em diversos formatos narrativos, seja infografia, texto, ou audiovisual, é disponibilizado online, sempre em licença Creative Commons, permitindo reprodução e uso não-comercial por qualquer pessoa, veículo ou organização interessada.

O foco e formato inovador de cobertura do veículo chamou a atenção, desde o início, de organizações filantrópicas ligadas à pauta da equidade de gênero e mídia, que apoiaram financeiramente o lançamento do projeto. Além disso, o foco do modelo de negócio da GN é centrado na contribuição dos leitores por meio de doações. Uma vez que todos os conteúdos são abertos, a criação de uma comunidade de leitores que possuem interesse no tema de cobertura é essencial para a sustentabilidade do veículo. 

Entre outras estratégias de diversificação de receita do veículo estão a realização de eventos relacionados a temas relevantes para a equidade de gênero,  parcerias com organizações diversas para o desenvolvimento de projetos e publicações, e a participação em editais e bolsas de reportagens. 

Em entrevista ao NativoJor, a fundadora da Gênero e Número e colunista da Revista Época Giulliana Bianconi fala sobre o diferencial da iniciativa, as estratégias do veículo para chegar à sustentabilidade financeira e as vantagens e dificuldades de lançar uma iniciativa nativa digital.

O jornalismo de dados demanda um investimento tecnológico, de design e de formação profissional que não fica barato. De onde veio o investimento inicial para o lançamento da Gênero e Número?

Conseguimos um aporte inicial da Fundação Ford de 80 mil reais. Acho que mesmo sem o financiamento, a gente teria lançado. Mas jamais da forma como a gente saiu. Coube ali a gente fazer um planejamento, por mais que a gente tenha alterado depois. Mas a gente fez um planejamento editorial, sabendo que haveria custos. O que foi mais difícil no primeiro momento foi realmente entender qual era a dinâmica de uma produção que não era somente uma redação. A gente tinha cara de projeto mas a gente tinha o desejo de atuar enquanto organização. Esse processo foi desafiador no início. Porque produzir conteúdo a gente foi produzindo. A gente foi entendendo os desafios de atuar como organização.

E hoje a GN é uma organização estruturada?

Hoje a gente já tem uma estrutura bastante formalizada. Mas isso levou um tempo. A gente lançou a iniciativa em 2016 e ela venho a existir formalizada, com CNPJ próprio, só em 2018. Um ano e meio depois. Até lá, a gente usava uma empresa pessoal que eu tinha.

Foi um desafio grande essa produção editorial, principalmente fazer num ritmo que a gente precisava. O trabalho de jornalismo de dados tem uma característica própria que não é só o tempo da apuração. É o tempo do levantamento e análise de dados, que difere de uma reportagem comum. Uma coisa é você fazer uma reportagem de dados. A outra é fazer um levantamento e uma reportagem mensal, uma newsletter semanal. Toda hora você precisa pensar nessa produção. A gente entendeu, ao formalizar, que a gente precisava completar a equipe com analistas de dados, trabalhar com pessoas que viessem dessa área mais aplicada, da estatística. 

Passamos por alguns desafios de gestão, mas tudo era aprendizado. Acho que em 2019, chegamos num ponto que ficou mais evidente que o que a gente faz é realmente uma produção bem dinâmica, que tem editorial. Mas ela é assim mesmo, enxuta. Eu não quero e não acho que a GN vai se transformar em uma organização de 50 pessoas. Hoje temos 10 pessoas contando todo mundo. E pra fazer tudo o que a gente quer em termos de planejamento, precisaríamos de no máximo 15 pessoas.

Os modelos de financiamento da iniciativa se alteraram ao longo do tempo. Vocês chegaram a tentar fechar alguns conteúdos exclusivamente para assinantes. Depois trocaram para um modelo de financiamento coletivo. Por que?

A gente fez um planejamento inicial pensando em uma forma de monetizar o conteúdo. Não o conteúdo todo, mas uma parte do que a gente produz. Isso se deu de forma efetiva com a proposta de assinatura da newsletter de política que a gente produzia desde o ano passado. Era um conteúdo que ia dar uma sobrecarregada na equipe na hora da produção. Pois a gente continuava com nosso especial a cada dois meses e nossas reportagens mensais.

“A vantagem de empreender é poder experimentar e realizar uma coisa que você acredita que possa contribuir com o ecossistema de comunicação, e contribuir para qualificar o debate de gênero”

O problema é que não temos uma audiência gigante para isso. Além disso, a gente começou a entender que o nosso conteúdo ainda é único, somos a única organização do país focada nesse nicho, que produz com regularidade. E seria um desperdício pro debate público que aquele conteúdo fosse fechado. Foi meio que uma análise da nossa contribuição. Da mesma forma como é difícil atrair assinantes pro Catarse, era difícil atrair pra newsletter. Mas tem uma diferença entre as duas coisas: o paywall realmente restringia a circulação e o alcance do nosso conteúdo. Depois de uma análise, vimos que a gênero e número ainda tinha muito espaço pra alcançar. Tem muita gente carente desse tipo de conteúdo. Nosso público alvo nem entendeu ainda nossa produção, o que fazemos, que é constante, então vamos deixar ele realmente circular, ter um alcance maior, chegar a mais pessoas. Não estávamos confortáveis com a ideia de ter conteúdo fechado. A gente acredita nessa cultura do apoio, do fortalecimento e do financiamento por leitores e leitoras.

Ainda não colocamos o fôlego que gostaríamos na nossa campanha de apoio, porque realmente temos uma equipe muito enxuta e nosso trabalho é muito intenso na produção de conteúdo. Mas é um dos nossos focos trabalhar melhor essa comunidade, pois sabemos que ela precisa ser alcançada e mobilizada.

O que falta para a sustentabilidade financeira da iniciativa?

Não é dessa forma (doações + eventos) que a gente vai bancar a Gênero e Número. Não é assim que vamos fazer a organização existir em curto prazo. Eu acredito que em três anos, a gente trabalhando fortemente a estratégia de comunidade, a gente poderá reavaliar e dar uma resposta. Eu acho que isso é uma coisa muito importante no jornalismo independente. Não é por ser uma organização pequena que as respostas vão chegar mais rápido. É um baita desafio fazer uma organização existir. A gente também vai ter que contar com financiamento internacional se quisermos nos manter com a estrutura que temos hoje. A nossa meta é ter 10% do orçamento geral da GN até o meio de 2020 vindo de outro lugar, de serviços, consultoria. Agora por exemplo a gente tá investindo em aplicar para bolsas pequenas de reportagem, algo que nunca fizemos antes. Estamos diversificando mesmo a receita. Toda essa análise, essa percepção de como tocar uma empresa que não tem uma renda vinda de vendas é muito desafiador. Precisamos sim buscar dinheiro de outras fontes.

Em quais aspectos a GN se diferencia de outras iniciativas? E por que empreender focando na temática de equidade de gênero?

Sem dúvida para mim a vantagem de empreender é poder experimentar e realizar uma coisa que você acredita que possa contribuir com o ecossistema de comunicação, e contribuir para qualificar o debate de gênero. Eu acredito não só no nosso conteúdo mas na forma como a gente existe. É uma organização majoritariamente formada por mulheres, dirigida por mulheres. Existe um espaço muito acolhedor para esses trabalhos serem realizados. Sempre me incomodou muito essa noção de que o jornalismo é uma das piores profissões em termo de qualidade de vida, essa é uma leitura ultrapassada. Acho que é um trabalho árduo mesmo, você tem que ser muito comprometido, mas isso não significa que você não pode trabalhar com prazer. Poder empreender no jornalismo, se distancia dessa noção ultrapassada de que jornalismo é sempre um chicote, pra mim isso já vale a pena. 

A segunda questão é estar nesse debate de gênero, que é fundamental. Também acho que empreender no jornalismo é empreender em um nicho, mostrar que é possível qualificar um debate que é deixado de fora. Isso pra mim é a recompensa. A GN chegando nas universidades, projetos nossos pautando projetos de lei, é assim que mensuramos nosso impacto. 

Eu acho que a gente se diferencia porque a gente tem uma definição de produção e distribuição desse conteúdo que é muito levado a sério. As reportagens da GN tem sempre como proposta trazer um aporte de dados mas sem deixar que isso desumanize. Uma das poucas coisas que eu ainda crítico na imprensa em geral é quando alguém faz uma matéria sobre alguma questão de gênero, com aquele “relatão” de dados, sem contextualização. Isso é perder a oportunidade. Os dados estão lá retratando, confirmando friamente uma realidade. A GN não abre mão de trazer dados e contextualizá-los. A contextualização é fundamental. A gente dá outro enfoque para questões que estão naturalizadas. O segundo diferencial é a nossa identidade, que é bastante visual. Temos uma cara própria.

Leave a comment