Marco Túlio Pires: “Se tem muito conteúdo ruim na web, a gente precisa inundar esse ecossistema de conteúdo bom”

O Google foi uma das empresas de tecnologia que apostou na aproximação com a indústria jornalística em meio às discussões sobre disseminação de conteúdos falsos nas plataformas digitais a fragmentação da receita publicitária do jornalismo ocasionada também pelo surgimento delas.

Em 2015, eles lançaram o Google News Lab, iniciativa cuja missão é colaborar com jornalistas e empresários para impulsionar a inovação nas notícias, oferecendo parcerias e treinamentos. Em 2018, a companhia centralizou todas as equipes que tinham alguma vertente de trabalho com o universo do jornalismo, inclusive o Lab, na Google News Initative, uma estratégia global e coordenada da empresa para fortalecer os laços com o jornalismo. O programa prevê desembolsos de US$ 300 milhões em iniciativas no setor ao longo de três anos.

Ele também anunciou, em 2019, o Desafio de Inovação Google News Initiative (GNI) da América Latina, que vai apoiar 12  iniciativas no Brasil que vão desenvolver projetos de experimentação de modelos de negócio e criação de produtos. Além disso, a empresa divulgou a criação da Incubadora Jornalística de Nativos Digitais, que oferecerá mentoria e espaço físico para iniciativas inovadoras no setor dentro do campus da empresa, em São Paulo. A GNI também é uma das apoiadoras do Festival 3i. 

Em entrevista a este projeto, o jornalista Marco Túlio Pires, coordenador do Google News Lab no Brasil, fala sobre as motivações por trás do investimento da empresa neste setor e analisa o cenário do jornalismo empreendedor no país. 

Quais as principais frentes de atuação da Google News Initiative?

Tiveram várias coisas que foram anunciadas como parte da GNI. Tem quatro coisas dignas de nota. A primeira é o comprometimento de 300 milhões de dólares no setor pelos próximos 3 anos, a partir de 2018. Além disso, a GNI tem três pilares, que a gente conhece aqui dentro como “três E’s”. O primeiro é elevar a qualidade do jornalismo nas nossas plataformas. Elevar a qualidade do jornalismo nas nossas plataformas significa ajudar iniciativas que vão ajudar a elevar a qualidade da informação que trafega na busca, no Google News, no Youtube. Qualquer iniciativa que vise melhorar a qualidade do conteúdo que trafega ali, seja evidenciando o conteúdo de maior qualidade seja estimulando parceiros para fazer com que eles produzam conteúdos de maior qualidade.

O segundo pilar é evoluir os modelos de negócio para além da publicidade digital.  Sabemos que um dos desafios da indústria jornalística hoje é reconstruir um modelo de negócio que seja sustentável, que pague o jornalismo do século 21. Uma vez que a publicidade não é suficiente e está indo para outros lugares na era digital. O jornalismo tinha outras fontes de renda, como classificados, que foram desempacotados na web de uma forma que secou a fonte de renda do jornal. E as assinaturas, que eram uma parcela pequena, hoje estão tendo que representar alguma relevância. 

E o terceiro é empoderar as redações para que elas possam adotar inovação tecnológica. Três “E’s”. Empoderar significa: como a gente tira lições de uma empresa altamente bem sucedida no mundo da tecnologia como é o Google e passamos esses ensinamentos para o mundo do jornalismo, para que essas empresas sejam bem sucedidas nas suas estratégias digitais também. A gente percebe que grande parte das redações hoje que estão encontrando algum sucesso também têm se tornado empresas de tecnologia. Não é só fazer jornalismo e fim. É uma empresa de jornalismo mas essencialmente uma empresa de tecnologia, precisa ter essa cultura, o espírito. Isso significa ter habilidades, jeito de fazer, cultura, modelo mental. Adoção de tecnologia, boas práticas. O que é muito diferente do que se tinha antes, uma empresa que essencialmente imprimia papel e distribuía. Esse pilar visa trazer ferramentas digitais, treinamento, mudança de cultura, transformação digital e aí vai. 

“Às vezes a gente acha de forma apaixonada que determinado conteúdo é tão flagrantemente mentiroso, errado, que é fácil tirá-lo do ar. Mas é perigoso entrar nisso. Precisamos entender que tipo de liberdade de expressão a gente defende”

A aproximação com o jornalismo, então, é uma tentativa de qualificar os conteúdos que trafegam pelas plataformas da empresa?

Um dos maiores problemas que existem hoje é que foi tudo acontecendo ao mesmo tempo. A web veio e aí os computadores chegaram, os pessoais, eles foram diminuindo de tamanho e a conexão foi ficando sem fio e hoje temos os celulares, que são um mega computador no nosso bolso. Ninguém quer voltar atrás. Hoje a gente consegue acessar tudo na nossa mão. Os benefícios são muitos. É tudo isso mesmo que foi prometido pra gente. Mas muito do que vem acontecendo não são coisas que foram previstas no sonho inicial. Da mesma forma com que a gente consegue diminuir os espaços entre as pessoas para que elas se conectem pro bem, a mesma coisa pode funcionar para o mal. A gente diminuiu os espaços entre as pessoas que pensam de forma semelhante sobre questões que já eram super bem resolvidas do lado da ciência, tipo terra ser plana ou não, o homem pousar na lua ou não. As teorias das conspirações, que sempre existiram, ganharam uma plataforma massiva. Antes tínhamos os mediadores de debates, os jornais, rádios, políticos, líderes de comunidade, a boataria de vilarejo ficava restrita a um número pequeno de pessoas que precisava se encontrar ou se comunicar por meios muito lentos. Isso nunca ganhava escala. Hoje não. A barra pra você ter seu próprio jornal é muito mais baixa. Hoje todo mundo pode ter uma opinião. E isso pode ser ruim. Qualquer pessoa pode fazer um site com um template bonitinho. Simular uma publicação de altíssima qualidade, que aparentemente tá tudo certo. Isso fez com que a web tivesse muito conteúdo bom e muito conteúdo de má qualidade. E temos uma crise de autoridade hoje. Se antes ela estava no mundo real, ela era vista como a materialidade do prédio da biblioteca, da instituição, do prédio do jornal. 

A busca é uma das plataformas pela qual informações trafegam. A gente sabia, pela experiência de 2014 e em outros países, que a disseminação de conteúdo enganoso durante o ciclo eleitoral seria muito intenso. O Google é uma empresa que preza pela liberdade de expressão. Em última instância, a gente defende que as pessoas tenham o direito de dizer o que elas quiserem de acordo com o Marco Legal. Tirar conteúdo do ar, é ruim. Não podemos abrir esse precedente. Como vamos decidir o que fica e o que sai? Isso é censura. Às vezes a gente acha de forma apaixonada que determinado conteúdo é tão flagrantemente mentiroso, errado, que é fácil tirá-lo do ar. Mas é perigoso entrar nisso. Precisamos entender que tipo de liberdade de expressão a gente defende. O Google é um defensor inveterado da liberdade de expressão, então o que fazemos é: se tem muito conteúdo ruim na web, a gente precisa inundar esse ecossistema de conteúdo bom. Uma forma de fazer isso é envolver vários produtores de conteúdos, dar acesso a tecnologia e treinamento, expertise para que essas redações possam fazer, por exemplo, autenticação de conteúdo.

E como isso é feito na prática?

O GNI vai definir uma estratégia que seja alinhada com esses três E’s e a gente vai ter coisas que vão ficar sob nossa responsabilidade, no Google News Lab. Grande parte do que o Youtube contribui pro Google News Initiative é na parte de evolução da qualidade do conteúdo na plataforma. O Youtube tem muito interesse nisso, que o conteúdo que trafegue lá tenha bastante qualidade. E uma das formas de você fazer isso, é estimular a boa produção de conteúdo. Você cria programas de incentivo para que parceiros dentro da plataforma possam fazer projetos inovadores que vão ter um resultado indireto: a gente não está pagando para que eles produzam conteúdo, a gente tem projetos que vão estimular a capacitação profissional, a adoção de boas práticas e tudo isso, em última instância, eleva a qualidade da produção de conteúdo do parceiro. Nesse caso do Youtube, que já  incluiu parcerias com o Nexo Jonal, a Band, o Youtube abre uma chamada, os parceiros submetem suas propostas, tem uma comissão avaliadora, e aí os projetos são aprovados.

“Temos escola atrás de escola, de gerações de jornalistas, que aperfeiçoaram o fazer, eles tem o refino técnico do que é o jornalismo de qualidade, mas é como se fossem duas populações isoladas que se encontraram 100 anos depois. A gente não tem uma cultura do jornalismo  pensar no negócio”

Um dos pilares do projeto, assim como o Desafio de Inovação Google News Initiative, é voltado para o desenvolvimento de novos modelos de negócio. Pela sua experiência no mercado, você acha que falta ao jornalismo uma visão do mundo dos negócios?

O jornalista de redação sempre gozou de uma posição na qual ele não precisava arcar com o negócio. Essa divisão da Igreja-Estado, para não influenciar decisões editoriais e afins. Então, você tem a figura do publisher que tá ali nos dois mundos, mas que protege o editor chefe, a redação. A estrutura de uma organização jornalística grande facilita este tipo de arranjo. Você pode ter profissionais que vão ficar 100% focados no negócio. O negócio jornalístico nunca foi a busca pela verdade. O negócio jornalístico sempre foi a venda de atenção. Isso não quer dizer que os jornalistas não persigam a verdade como missão ética da sua profissão. Mas são coisas diferentes. A busca pela verdade nunca foi monetizada. Ele nunca precisou necessariamente mostrar para a sociedade que o valor do jornalismo era esse. Por que sempre foi algo muito lucrativo, o monopólio da atenção em jornais, em revistas, em tvs e rádios. Não monopólio, mas ter ali uma grande quantidade de pessoas em que você podia vender espaço de publicidade e um custo operacional baixíssimo em relação ao faturamento que você tem, isso fez do mercado jornalístico uma operação muito lucrativa.

Mas isso criou determinados vícios. Temos escola atrás de escola, de gerações de jornalistas, que aperfeiçoaram o fazer, eles tem o refino técnico do que é o jornalismo de qualidade, mas é como se fossem duas populações isoladas que se encontraram 100 anos depois. A gente não tem uma cultura do jornalismo  pensar no negócio justamente por causa dessa divisão, para não poluir os valores editoriais. Mas agora, como o negócio publicitário tá sofrendo alterações, a gente precisa descobrir qual o modelo de negócio que vai sustentar o jornalismo no próximo século. Eu não acho que tá faltando empreendedorismo no jornalismo. Mas ao mesmo tempo precisamos entender que é recente esse fenômeno de que os jornalistas precisam necessariamente pensar sobre a viabilidade do negócio. É por isso que tá tendo um retorno forte às assinaturas, contribuições. Isso devolve ao jornalismo, transforma em negócio a credibilidade jornalística. Eu não tô vendendo espaço, tô vendendo pro meu assinante que a minha cobertura é necessária pro funcionamento dessa sociedade, dessa democracia. Isso é novo para as escolas, para as redações, pra uma geração. Por isso você talentos de fora do mundo jornalístico entrando. Por que gerenciar um negócio é diferente que gerenciar uma editoria. São habilidades que nunca foram desenvolvidas historicamente no jornalismo. Não tinha uma escola de pensamento disso. Mas temos vários veículos que estão surgindo agora. O desafio hoje é, como a gente protege o jornalismo como instituição e como a gente agrega talento para essa instituição do jornalismo sem que o acesso a esta instituição seja monopolizado por algum grupo. As escolas têm um papel fundamental nesse processo, pois elas podem facilitar esse acesso a outras habilidades, de outras escolas. E evitar vícios de uma indústria que está em transformação.

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