Sérgio Lüdtke: “O cenário para o jornalismo é composto por redações menores, mais especializadas e muita colaboração entre elas”
Sérgio Lüdtke acredita que, para o jornalismo, ter um propósito em comum é mais motivador que ter uma concorrência. O pesquisador, consultor de estratégias digitais e professor está por trás de diversas iniciativas inovadoras, na pesquisa e na prática, que surgiram nos últimos anos em um movimento de se pensar as dificuldades e potencialidades do jornalismo na contemporaneidade.
Foi responsável por duas grandes pesquisas sobre empreendedorismo no jornalismo digital, entre elas o “Ponto de Inflexão”. Em uma parceria com a organização SembraMedia e sua empresa de consultoria Interatores, o pesquisador levantou e entrevistou as 25 iniciativas nativas digitais brasileiras para o projeto.
Também é editor-chefe da First Draft News, iniciativa que promove treinamentos de redações pelo mundo para a checagem e contenção da disseminação de notícias falsas. No Brasil, o projeto deu lugar ao Comprova, uma coalização sem fins lucrativos entre redações de veículos tradicionais e também de nativos digitais para tratar a desinformação sobre políticas públicas no Brasil.
Com a colaboração da Abraji, Projor, Google News Initiative e Facebook’s Journalism Project, a primeira edição do projeto foi desenvolvida em meio a corrida eleitoral de 2018. A iniciativa voltou em 2019 como um novo esforço para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.
Em entrevista a este projeto, Lüdtke destacou as principais descobertas de suas pesquisas sobre nativos digitais brasileiros, apontou a colaboração e a aproximação com a audiência como pontos centrais para o futuro do jornalismo e fez uma aposta sobre os modelos de financiamento mais promissores.
O que a pesquisa da SembraMedia levantou sobre as iniciativas nativas brasileiras?
A gente teve no Brasil um período muito interessante entre 2014-2016, que foi um período de efervescência. No qual teve o surgimento de iniciativas com mais planejamento, se preparando para tentar alcançar um grau de maturidade mais rapidamente. Alí estão Jota, Nexo, Poder 360… já surgem num momento que já estão mais preparados. São iniciativas que sobrevivem fazendo jornalismo, mas sobreviveram pela tenacidade das pessoas por trás, porque tinham uma causa interessante, porque tinham um objetivo de trabalho cativante, combinado com uma situação econômica que contribua mais para manutenção dessas iniciativas. O que a gente vê é que, de 2016 pra cá, com a crise econômica, cessaram as novas iniciativas, temos poucas coisas que surgiram depois (Meio..Crusoé..). O ritmo foi quebrado com a crise econômica.
Neste período, também tivemos um número muito alto de demissões no país. Estes “passaralhos” estão de alguma forma relacionados ao surgimento das iniciativas?
Sim. Acho que foi um ímpeto quase impensado de boa parte das pessoas que criaram as iniciativas. É um conjunto de coisas. Muitos deixaram sua atividade nas redações, saíram com algum recurso, queriam continuar fazendo o que faziam, tinham um capital de fontes e algum capital social que poderiam abrir possibilidades para dar manutenção a este relacionamento com sua comunidade de leitores e tal, e não tem barreira de entrada. A barreira pro mundo digital é muito baixa. Com poucas horas você tem um site no ar, uma marca, uma marca que muitas vezes deriva de algo sob sua responsabilidade em outro veículo. Só que essa barreira de entrada é boa por um lado e ruim por outro. As pessoas se jogaram muito. Por uma série de razões, muitas delas de fórum íntimo, de querer continuar sendo relevante, mas elas se jogam demais no digital fazendo uma migração forçada em função de uma situação que elas são provocadas e não se dão tempo de fazer o planejamento necessário, fazer uma avaliação pra ver como dar sustentação a isso. Então, muitas vezes iniciativas que parecem muito interessantes no começo acabam depois sendo interrompidas ou continuando num ritmo lento porque essas pessoas, para terem sustentação, precisam recorrer a freelas, outros trabalhos e projetos que vão concorrer o tempo.
A pesquisa mostrou, em 2016, que a publicidade ainda era a principal forma de financiamento desse jornalismo nativo. Você acha que o cenário ainda é o mesmo hoje?
Se você for pegar isoladamente, acho que ainda continua sendo. Mas a publicidade cada vez reduz mais. O que existem são novas formas de usar a publicidade para financiar. Usando as redes sociais, por exemplo. Elas fazendo a interlocução com o anunciante e envolvendo o produtor de conteúdo nisso. Isso é um dos novos modelos que vemos da publicidade sem que seja a coisa de ter impressões no site. A publicidade continua sendo interessante. Mas as empresas de mídia que tem versões offline que também estão no online, mídias mais tradicionais, fizeram um movimento de troca desse eixo da publicidade para as assinaturas. Em alguns a publicidade continua caindo e as assinaturas crescendo. Esse é o momento do ambiente da informação, que requer mais investigação própria, mais análise. Acho que há uma demanda pra isso. A desinformação corre muito solta, há um ambiente informativo muito polarizado e acho que se criou uma demanda pela informação de mais qualidade. E aí, se tem essa demanda e também a mudança da publicidade pro conteúdo pago, os veículos também podem abrir um pouco mão do caça-clique, daquilo que era feito para gerar clique para publicidade, e se voltar um pouco para a criação de conteúdo de melhor qualidade. Acho que isso melhorou o jornalismo de maneira geral. Em compensação, fechou o jornalismo. Mesmo o jornalismo que ta na web, muito dos veículos estão fechados, você não tem acesso a ele a não ser pagando. Não é uma realidade fácil para um brasileiro, tanto é que as tiragens são baixas nos jornais, poucas assinaturas, e poucos conseguem se sustentar só com isso. Acho que essa vai se um pouco a regra. Fragmentação também das fontes de audiência e financiamento. Se a gente puder fazer uma visão ampla desse universo, o que me parece é que os veículos vão se tornar mais nichados ou especializados ou num tema, numa localidade ou num tipo de conteúdo. Vão buscar mais a relevância, para se tornarem a principal referência nesses grupos, nessa comunidades de interesse. E a partir dali, identificar o tipo de possibilidade de financiamento que é possível nessa relação de influência com a comunidade de leitores.
Acho que se abre também um espaço importante para as organizações que são nonprofits, que vão buscar um financiamento para um jornalismo que é importante pra sociedade e têm que encontrar quem resolva financiar isso. A gente não tem no Brasil uma tradição de financiamento disso, de mecenas. Quem faz isso no Brasil conta muito com o dinheiro de fora. Talvez um outro governo, mais interessado nas questões de liberdade de expressão, possa abrir algum tipo de financiamento público para isso. Mais o cenário é este: redações menores, mais especializadas e muita colaboração entre elas.
Muitas pesquisas apontam hoje uma tendência pelo modelo de membership entre nativos. Como você vê este cenário?
Acho que é importante pra várias coisas. Ele não é uma solução única, e talvez a gente nunca chegue numa solução, sempre vai precisar compor esse combo de fontes de financiamento que vão apoiar. Assim como fazemos com a audiência, não temos uma fonte única, as fontes de financiamento talvez sejam até mais fragmentadas. O jornalismo quando ele vai para especialização, algumas vezes ele vai estar relacionado a algumas causas. E essas causas podem ser interessantes tanto para pessoas que possam ser mecenas, pessoas que possam dar uma colaboração módica, mas que somadas a outras podem ser interessantes. Além de empresas que têm interesse em se relacionar de alguma forma com isso porque defendem alguma causa semelhante. Ou que precisam ter inserção na comunidade. Que é o bom e velho patrocínio. Eu acredito muito nisso. Não são todas as iniciativas que podem se dar a esse luxo. Há uma via de mão dupla entre o conteúdo e como os leitores contribuem de alguma forma.
Um caminho que eu vejo para os veículos em relação ao financiamento é usar a relevância que conseguiu, ser destaque em determinado tema, e usar isso para fazer por exemplo conteúdo para marcas. Ele pode ser muito bem remunerado e pode transformar a empresa em uma empresa consistente. Acontece que o valor que ele gera para sua marca, enquanto produz conteúdo de interesse desse público, se deteriora quando ele usa a marca para apoiar outras marcas que tem um interesse específico no público. O Projeto #Colabora, por exemplo, tem um acordo de conteúdo com o Instituto Coca-Cola que dá sustentação a todo braço de conteúdo próprio deles. Eles precisam remunerar isso e reforçar a marca porque isso deteriora a marca. A medida que eles vão associando novas empresas. A marca empresta credibilidade para outras marcas. Mas esse é um caminho para se ganhar dinheiro com jornalismo.
“O jornalista tem uma dificuldade de lidar com erro, por exemplo. E se você tem essa dificuldade de lidar com erro, você testa pouco. Indo sempre pelo mais seguro, a gente não consegue mudar essas coisas. A gente não põe oxigênio nesse ambiente. Outra coisa é que o jornalista ele raramente pensa em negócios”
O jornalismo nativo digital vai chegar a maturidade, ou ele ainda vai persistir na “tentativa e erro” por algum tempo?
Ainda vai ser. É muito difícil a gente dizer “esta mídia digital chegou na maturidade”, porque normalmente eles estão apegados a figura de um fundador e, se essa pessoa vem a faltar, acaba o negócio. Também são muito dependentes de uma única fonte de financiamento, se ela seca, ele também se foi. É muito difícil chegar nisso. Mas acho que estamos testando muitas coisas e precisamos ter um ambiente que permita renovar isso, voltar as iniciativas a surgirem, para diversificar, testar novos modelos. A gente tem poucas newsletter ainda. São poucos que estão no jornalismo explicativo, como o Nexo. Pouca gente opera nessa faixa. São poucos como o JOTA, que operam num setor específico, sempre testando novas possibilidades de conseguir financiamento.
A demora por mudança acontece por várias razões. Acho que a crise econômica é um problema. A falta de fôlego para fazer testes é outro. O entendimento do que é o empreendedorismo na área digital é ainda muito incipiente. O jornalista tem uma dificuldade de lidar com erro, por exemplo. E se você tem essa dificuldade de lidar com erro, você testa pouco. Indo sempre pelo mais seguro, a gente não consegue mudar essas coisas. A gente não põe oxigênio nesse ambiente. Outra coisa é que o jornalista ele raramente pensa em negócios. Empreendedor pode ser tudo, mas pensar em negócio e em fontes de receita não é muito da cabeça dos jornalistas.
E isso começa pelas próprias faculdades, que raramente têm aulas dedicadas a isto…
A gente tem uma parte acadêmica muito atrasada em relação ao mercado, e um mercado muito atrasado em relação ao que é a realidade do público. Tem vários degraus que a gente precisaria buscar. Essa é uma das coisas que reconheço muito em todos os estudos que eu fiz: a dificuldade que o jornalista tem de criar relações com outras competências. De não entender muitas vezes que ele precisa ter alguém de negócios. Que o conteúdo por si não é nada se ele não tiver conectado com o público. Essa é outra coisa, a conexão com o público. Como é bom a gente ter ferramentas para saber o que o público tá achando dos produtos que trazemos para ele. Para nos ajudar a entender se a gente acertou ou não. Então sempre fui muito defensor da interação. Era quase linchado nas aulas quando eu dizia que o jornalistas era responsável até o final dos tempos por aquilo que ele publicava. Ninguém aceitava, lá atrás, que o jornalista devesse olhar os comentários das pessoas na redes sociais ou áreas de comentários. As pessoas tem opiniões, informações, elas querem comentar, as vezes elas tem correções. O jornalista é um generalista, então às vezes um leitor especializado pode agregar informação. E agora a gente tá num momento que a reconexão com o público é muito importante. A gente precisa se reconectar com as pessoas. Quando a gente vai ver os índices de confiança, a imprensa tá muito defasada em relação a confiança em pessoas próximas. Essa conexão vai ser importante quando eu quiser ter membership, quando eu quiser ter crowdfunding, quando eu quiser obrar por assinatura. A conexão vai me ajudar quando eu quiser usar a consultoria como forma de financiamento. Se eu não olho para aquilo que a audiência tá me dizendo, se eu olho para um número frio, como eu sou capaz de fazer qualquer tipo de consultoria?
E você acha que essa moderação, o contato com o público está feito de uma maneira qualificada hoje?
Ainda somos reativos. A gente escreve uma matéria que está muito bem apurada, mas o título diz um resumo dela e as pessoas se rebelam contra o título reclamando de coisas que estão na matéria. Aí o jornalista fala “poxa, mas ele nem leu a matéria”. Quando um público que vai fazer o comentário, isso demonstra que ele está interessado naquele tema. O que eu devo fazer? Devo entender porque ele não leu a matéria. Onde eu to errando na hora de me conectar com essa pessoa. Por que minha narrativa não foi interessante ao ponto de fazer com que uma pessoa que se manifesta, que tem opinião sobre isso e que se dá ao trabalho de fazer um comentário, leia o conteúdo? Essa é a pergunta que deveria estar sendo feita. Por que eu não consegui fazer uma narrativa capaz de prender a atenção dessa pessoa. Eu só fico reafirmando que ela nem leu a matéria. Isso é horrível, pois eu estou desconsiderando alguém com quem eu deveria estar falando, e quem eu espero um dia que possa me financiar. O fato dessa pessoa existir, ajuda no financiamento da minha iniciativa. Ela vai pagar uma assinatura, vai aumentar os números de audiência me ajudando com publicidade, essa pessoa que me paga.
A relevância se dá pela capacidade de produzir um bom conteúdo, mas também por transparência para unir as pessoas. Não se basear só em números. É importante ter um olhar mais qualitativo sobre determinada coisa.
“Ninguém aceitava, lá atrás, que o jornalista devesse olhar os comentários das pessoas na redes sociais ou áreas de comentários. As pessoas tem opiniões, informações, elas querem comentar, as vezes elas tem correções. O jornalista é um generalista, então às vezes um leitor especializado pode agregar informação”
Como funciona a coalizão entre os veículos para o Comprova financeiramente falando. Eles recebem algo para participar?
Alguns recebem. Quando é feito o orçamento do Comprova, liberamos algumas bolsas e alguns veículos se candidatam, principalmente os menores. Isso permitia pagar em parte o salário de alguém que ficaria responsável pelo comprova. Neste ano nosso aporte está vindo do Google e do Facebook. E o First Draft dá um suporte técnico.
Por que colaborar no jornalismo?
Quem hoje pode fazer uma boa cobertura das queimadas da amazônia? Ninguém. Não há grandes redações capitalizadas nesta região. Então ter parceiros locais que possam que buscar histórias, entender melhor como isso funciona, que têm as próprias fontes, próprios recursos de medição, isso é importante. Acho que esse é o caminho natural do jornalismo. Essa coisa de redução das redações vai obrigar a isso. A proximidade de grupos que não se veem como concorrentes. A amazônia real não é concorrente da Folha, por exemplo. Então essa parceria é boa para os dois. A Folha ganha por fazer uma cobertura mais certeira, a Amazônia Real vai ganhar uma dimensão maior, o que vai ajudá-la em seu financiamento. A colaboração é um caminho sem volta pro jornalismo. Não vamos conseguir sobreviver sem colaboração. A outra tendência são organizações sem fins lucrativos. Tem coisas que o público não vai ter condição de pagar mas é importante para a sociedade que haja cobertura sobre aqueles temas.
O que os veículos ganham em participar dessa colaboração?
Ganham bastante. A primeira coisa eu acho que é marca. O fato de estar participando de algo que a sociedade entende como sendo bom. O fato da marca estar associada a isto e a outras marcas importantes. A identidade de marca é reforçada. Ganham também treinamento e capacitação de seus profissionais. Uma pessoa que tenha trabalhado no comprova por 3 meses, 6 meses, ela está absolutamente capacitada para dar treinamento pras outras pessoas em outras redações. Ela teve acesso a muitas ferramentas. E o terceiro é conteúdo. Nas eleições, tinha dias que tínhamos 5 verificações. A folha por exemplo, estava cedendo um jornalista mas podia publicar cinco textos. As iniciativas não só podem publicar o texto, como podem utilizar todo o conteúdo que foi gerado na verificação independente de terem participado dela ou não.
Acho que o Comprova é fundamental em alguns aspectos. Um deles é preparação dos jornalistas. Acho que ele é uma escola pros jornalistas, por que a gente precisa olhar pro universo das mídias sociais com um olhar jornalísticos e a gente não faz isso nos nossos veículos. A gente faz isso como distribuição, mas não como foco de cobertura. Acho que ele é importante para chamar atenção das pessoas pras armadilhas do ambiente informativo. Mostrar que o ambiente precisa ser depurado. Mostrar que o jornalismo precisa ser mais transparente. A gente tem uma estrutura muito esquemática. Quase que pegamos a pessoa pelo braço para explicar a verificação. Queremos ser referência de transparência, uma escola pros jornalistas e um sinal de alerta para a população.