A conta do jornalismo nativo digital
“A substituição do papel por meios eletrônicos é central na Era da Informação. Nenhuma indústria será mais afetada que a indústria jornalística. Se não agirmos agressivamente agora, seremos vítimas de um choque no futuro”. (tradução livre)
Este é o diagnóstico do pesquisador Thomas McPhail, autor do artigo “Adeus (ou quase) ao jornalismo impresso” e então professor associado da Universidade Carleton (Canadá), em 1980. O ano marcou a primeira experiência de distribuição eletrônica de notícias. Um projeto encabeçado pelo CompuServe, um dos primeiros serviços a disponibilizar conexão à internet em nível internacional, selecionou onze veículos associados a cooperativa de jornalismo Associated Press para testar um modelo de envio de reportagens via conexão telefônica.
Os jornais disponibilizavam seus conteúdos para a empresa de computação e os dados, então, eram processados e formatados por uma equipe de programadores. Por meio de uma conexão via telefone com a empresa de tecnologia, o leitor recebia em seu próprio computador as notícias de seu interesse, aproximadamente 300 palavras por minuto. Cada reportagem demorava cerca de duas horas para chegar completa ao usuário.
Nos anos que seguiram, o jornalismo viu despontar suas primeiras experiências digitais. Em seu o livro “A história do jornalismo online”, o pesquisador David Carlson credita ao jornal semanal Palo Alto Weekly, de São Francisco (EUA), o feito de inaugurar a história do jornalismo na rede mundial de computadores, ou World Wide Web, em 1994.
Quarenta anos depois da exclamação de McPhail e 25 anos depois do pioneirismo digital do Weekly, a indústria jornalística continua enfrentando mudanças significativas em sua estrutura desencadeadas pelo avanço de tecnologias de comunicação e informação. A digitalização alterou e segue alterando não só a forma como as notícias são produzidas, mas também como elas são consumidas.
Um estudo realizado pelo projeto News Desert, da Universidade da Carolina do Norte (EUA) aponta que, desde 2004, mais de 1800 jornais diários e 1700 periódicos semanais deixaram de circular no país. O declínio têm uma relação direta com a falta de investimento em modelos de negócios que priorizem o digital, segundo os pesquisadores. No Brasil, um dos casos mais evidentes da crise que abala a imprensa tradicional foi o fechamento, em 2018, de 28 revistas do Grupo Abril. O levantamento “A conta do passaralho”, realizado pelo Volt Data Lab, aponta que desde 2012, 2327 jornalistas foram demitidos em redações no país.
Para Rogério Christofoletti, crítico de mídia e professor do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) o desequilíbrio no desenvolvimento do jornalismo na internet está relacionado aos desafios de uma mudança de cultura na indústria. “Acho que não se pode dizer que foi apenas um erro de avaliação. A crise atual dos meios impressos se deve a erros de avaliação, de descaso e despreparo técnico, de medo de inovar e da incapacidade comum de não prever transformações tão disruptivas em meio a elas”, discorre o professor. “Não foi apenas o caso de a indústria não dar atenção às potencialidades digitais”.
Nascidos na era digital
A crise identitária e econômica de grandes jornais e revistas, tradicionalmente impressos, somada às novas possibilidades trazidas pelo ambiente online abriu espaço para o surgimento de empreendimentos jornalísticos que já nascem na rede: os nativos digitais. Apesar de possuírem formatos e estruturas muito diferentes entre elas, a maioria destas iniciativas é “pequena, administrada por poucos funcionários em tempo integral e opera com modelos diversos de financiamento”, como explicou em 2015 a pesquisa encomendada pela Open Society Foundation “Publicando por trocados: inovação em startups de jornalismo” (tradução livre).
A expressão “nativo digital” não é consenso entre pesquisadores. Alguns estudos e artigos também utilizam o termo “iniciativas full digital”, por exemplo. Da mesma forma, a conceituação do que é jornalismo digital difere entre estudiosos. Este artigo, publicado pelo pesquisador Ramón Salaverría, um dos mais influentes no estudo do ecossistema digital, dá uma breve explicação de como diferentes especialistas abordaram a questão ao longo dos 25 anos do surgimento do jornalismo na web. |
Entre novembro de 2015 e fevereiro de 2016, a Agência Pública, organização de jornalismo investigativo sem fins lucrativos, criou uma ferramenta para mapear as iniciativas jornalísticas brasileiras que nasceram na rede, são frutos de projetos coletivos e não ligadas à grandes grupos de mídia, políticos, organizações ou empresas. Batizado de “Mapa do jornalismo independente”, o projeto foi ao encontro de pesquisas nacionais e internacionais que já apontavam uma tendência pelo aumento de novos empreendimentos de jornalismo digital ao redor do mundo, e principalmente na América Latina.
Ao todo, foram mapeadas 79 iniciativas em 12 estados e no Distrito Federal. A partir de 2006, foi possível observar o surgimento de ao menos um veículo por ano. De 2013 para 2014, a fundação de novas organizações saltou de cinco para 18.
Segundo o jornalista e pesquisador Sérgio Lüdtke, o período marca um momento de efervescência do jornalismo nativo digital no Brasil. “Entre 2014 e 2016, tivemos o surgimento de iniciativas com mais planejamento, se preparando para tentar alcançar um grau de maturidade mais rapidamente”. O movimento foi impulsionado pelo aumento das demissões em veículos tradicionais, conta o pesquisador: “Acho que foi um ímpeto quase impensado de boa parte das pessoas que criaram as iniciativas. Deixaram sua atividade nas redações, saíram com algum recurso, queriam continuar fazendo o que faziam, tinham um capital de fontes e algum capital social que poderiam abrir possibilidades para dar manutenção a este relacionamento com sua comunidade de leitores”.
Ao mesmo tempo em que a estrutura online facilitou o desenvolvimento de novos veículos, ela também expôs o despreparo desse novo jornalismo em ser pensado enquanto um negócio sustentável. “As pessoas se jogaram muito fazendo uma migração forçada para o digital e não se dão tempo de fazer o planejamento necessário, fazer uma avaliação pra ver como dar sustentação a isso. Muitas vezes iniciativas que parecem muito interessantes no começo acabam depois sendo interrompidas ou continuando num ritmo lento porque essas pessoas, para conseguirem se sustentar, precisam recorrer a freelas, outros trabalhos e projetos que vão concorrer o tempo”, explica Lüdtke.
Ao pesquisar “Como financiar o jornalismo digital?” no Google, maior site de buscas da internet, são gerados mais de 3,5 milhões de resultados. Em inglês, o número chega a 90 mi. Essa é talvez uma das questões mais discutidas entre acadêmicos e profissionais do jornalismo ao redor do globo. A resposta, por sua vez, possivelmente passa pelo entendimento sobre as mudanças na cadeia de valor da indústria jornalística, a inovação nos novos formatos narrativos e de distribuição da informação, e pela necessidade de aproximação da profissão com o mundo dos negócios. Olhar para experiências de veículos nativos digitais pode ser um caminho para entender esse movimento efervescente de transformação no jornalismo.
A crise do modelo de negócio tradicional
Em circulação desde 1851 e reconhecido como um dos jornais mais influentes do mundo, o americano The New York Times sentiu fortemente o impacto das transformações tecnológicas e sociais da digitalização em seu negócio. Entre os anos 2000 a 2012, a empresa viu sua receita cair em 1,6 bilhão de dólares. Se essa projeção perdurasse, a perspectiva de vida do jornal não era promissora.
Os dados são apresentados no relatório de 2014 “Um modelo de negócio para o jornalismo digital”, resultado do pós-doutorado do jornalista e pesquisador Caio Túlio Costa na Universidade de Jornalismo de Columbia (Nova York), e que se tornou um marco nos estudos do jornalismo digital no Brasil.
MODELO DE NEGÓCIOS: É o modelo escolhido por determinada empresa para que seu negócio seja viabilizado e financeiramente sustentável. Modelos de negócio implicam na criação de estratégias para gerar valor nas diversas etapas que compõem os processos de produção, circulação e consumo de produtos, bens e serviços. |
O caso do Times é emblemático e exemplifica o rumo tomado pela indústria nas últimas décadas: a cadeia de negócio tradicional do jornalismo, antes representada por um sistema monopolista de informação, centralizado em algumas poucas empresas centenárias, e uma composição de receitas fortemente ancorada na venda de publicidade, foi diluída com o ecossistema digital.
É o que explica Egle Spinelli, doutora em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Mestrado em Produção Jornalística e Mercado na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM): “Até o final do século passado, as empresas jornalísticas eram asseguradas pela comunicação de massa de um para muitos, onde as empresas mantinham um sistema de produção, comercialização e distribuição permanente e sólido, principalmente rentabilizado pelo mercado publicitário”.
O crescimento do acesso à internet modifica a distribuição de anúncios publicitários. Se antes para atingir determinado público os anunciantes se restringiam a jornais e revistas, hoje se distribuem nos mais variados tipos de sites, redes sociais e ferramentas de buscas na internet. Segundo Spinelli, isso obrigou as empresas de notícias a procurarem novas estratégias de negócio para se manterem perenes no mercado.
O fato é que, no ecossistema digital, todos os lados da cadeia informativa ganham mais liberdade: as empresas de mídia, os anunciantes e principalmente a audiência, que ganha voz para se tornar produtora de conteúdo, além de ter a sua disposição uma quantidade enorme e diversa de fontes de informação. Essa é a ideia defendida pela reconhecida pesquisa-manifesto “Jornalismo pós-industrial”, publicada em 2012 por Christopher William Anderson, Emily Bell e Clay Shirky, no Tow Center for Digital Journalism, da Universidade de Columbia, em Nova York.
Isso fez com que o foco das empresas de jornalismo migrasse dos anunciantes para o leitor. Se fez necessário a criação de modelos de negócio inovadores que se adaptassem às novas necessidades desta audiência digital.
“A audiência hoje é uma das principais responsáveis pela geração de receita para empresas jornalísticas, seja pela publicidade que atraem, seja pela sua importância como financiadora de projetos por meio de assinaturas e outras formas de apoio, como crowdfunding, doação e micropagamentos”, exemplifica a professora Spinelli, da ESPM.
Apesar de já ser uma das fontes principais de receitas desde a origem do jornalismo impresso, as assinaturas ganham um peso maior com a digitalização devido a necessidade de fidelizar audiências que dividem sua atenção em diversos outros canais informativos. Diante da quantidade imensurável de informação aberta que trafega pelas redes, da concorrência crescente de meios de informação e entretenimento, como conseguir que o leitor escolha seu conteúdo e pague por ele?
Adotando o paywall e focando justamente na adesão de assinantes digitais, o mesmo The New York Times conseguiu reverter a tendência de queda acentuada de receita a partir de 2011. Porém, como lembra Marco Túlio Costa em seu relatório, “esse algo estava sendo feito de acordo com a antiga cadeia de valor da indústria jornalística. Seus executores apenas transpuseram para os meios digitais, o mesmo modelo do negócio”.
PAYWALL: A aplicação do recurso da assinatura de modo rentável no ambiente digital foi explorada com mais efetividade com o desenvolvimento do paywall. O chamado “muro de pagamento” é um modelo de assinatura que limita o acesso do público a conteúdos digitais. Trata-se de um recurso de monetização, utilizado tanto por jornais tradicionais que se digitalizaram como por nativos digitais, em que o usuário paga uma taxa fixa para ter acesso ao conteúdo jornalístico, total ou em partes. Seu funcionamento se dá majoritariamente de três formas. O hard paywall é o uso da modalidade totalmente fechada. Nessa categoria, os conteúdos do veículo de informação só podem ser acessados por assinantes. O paywall poroso (soft paywall ou modelo metered) permite o acesso a um número específico de produtos de um veículo. Quando o usuário atinge o limite estabelecido, os conteúdos são bloqueados e ele é convidado a assinar o jornal. Já o freemium paywall permite o acesso livre do leitor a uma seleção de conteúdos, mas cobra por conteúdos ou produtos exclusivos (premium). As três categorias também são utilizadas de forma mista. |
Nem mesmo o alcance global do veículo permitiu que a forma de operar da indústria tradicional fosse sinônimo de sustentabilidade na web. Em 2017, o jornal lançou o “Jornalismo que se destaca” (tradução livre), um relatório institucional detalhado que apresenta diretrizes a serem seguidas até 2020 pela redação para a inovação das reportagens no ambiente digital, atendendo a demanda das novas tecnologias.
“Embora os últimos dois anos tenham sido um período de inovação significativa, o ritmo deve acelerar. Com muita freqüência, o progresso digital foi realizado por meio de soluções temporárias; agora devemos romper as barreiras. Devemos diferenciar missão e tradição: o que fazemos porque é essencial para nossos valores e o que fazemos porque sempre fizemos isso”, afirma o relatório assinado pelo chamado “2020 Group”.
Em 2019, o jornal alcançou 4,1 milhões de assinaturas digitais. Além disso, a aposta em serviços criativos, como podcasts e vídeos, vem atraindo investidores ao jornal. Os dados mostram como a adequação para um modelo editorial que se aproxime dos interesses da audiência pode impactar diretamente no modelo de sustentação, ou seja, na forma com que o veículo vai conseguir dinheiro.
No Brasil, ainda há um longo caminho de estruturação de um jornalismo digital. Jornais tradicionais, como a Folha de S. Paulo e o O Estado de São Paulo , também estão apostando na ampliação da circulação digital. A queda no número de leitores e o alto número de demissões, no entanto, escancaram a instabilidade que abala o setor.
Para Christofoletti, professor da UFSC, a crise no jornalismo não é apenas um problema financeiro. “A crise de sustentação é grave e aguda, mas ela é apenas parte de uma crise mais ampla, que afeta a credibilidade dos meios, que afeta a ética das empresas e dos profissionais, e que também atravessa a própria governança interna dessas organizações. É uma crise dinâmica, complexa, inédita no seu alcance e gravidade. O setor só tem uma escolha: enfrentá-la. Se não fizer isso, vai perecer”, afirma o pesquisador.
Para ele, a onda de surgimento de veículos nativos digitais mostra uma reação da indústria à crise e ajuda a entender por onde passa a estrada da sustentabilidade no mercado jornalístico. “Nos Estados Unidos, alguns nativos digitais já se mostram não só vigorosos em termos de sustentação financeira quanto inovadores nas práticas jornalísticas e nos pactos com seus públicos. No Brasil, temos Agência Pública, Nexo e The Intercept Brasil, que demonstram convicção jornalística para investigar, versatilidade de formatos e gêneros, proximidade com seus públicos, rigor ético e penetração crescente junto à sociedade”.
A sustentação das iniciativas digitais
Apesar de ainda não possuírem o mesmo alcance e influência de grandes empresas de comunicação que estão investindo em suas frentes na rede, o surgimento de veículos nativos configura um respiro para a democratização da informação. Mas para isso, são necessários recursos que ofereçam segurança financeira aos projetos e aos profissionais por trás deles.
Em 2016, a SembraMedia, organização sem fins lucrativos dedicada a ajudar empreendedores digitais, lançou o “Ponto de Inflexão”, um estudo pioneiro sobre o impacto que estes nativos digitais estão gerando, os riscos que eles enfrentam e a possibilidade de um modelo de negócios viável para o jornalismo digital independente e de qualidade.
Ao todo, foram estudadas 100 startups de jornalismo digital, fundadas entre 1998 e 2016, em quatro países da América Latina: Argentina, Brasil, Colômbia e México. Foram selecionadas 25 iniciativas de cada país com tamanhos e estruturas variadas. A pesquisa revelou que é crescente o número de nativos que conseguem construir negócios sustentáveis – e até lucrativos – em torno do jornalismo de qualidade.
Mais de 70% dos empreendimentos analisados contaram com um investimento inicial de menos de US$ 10 mil, e mais de 10% desse total estão gerando pelo menos meio milhão de dólares por ano. Além disso, o estudo aponta que a diversificação de receitas é a chave para o sucesso do empreendedorismo digital, principalmente para iniciativas com tamanho e alcance intermediário: 66% de todas os analisados possuem três ou mais fontes de financiamento.
Para Janine Warner, cofundadora do SembraMedia, há dois caminhos viáveis para a sustentabilidade no ambiente digital: grandes audiências ou audiências leais. “Se você tem uma audiência pequena, mas leal, você começa a ver os modelos de doações e assinatura como mais viáveis. Além de outras fontes, como consultorias, programas de formação”, explica.
Sérgio Lüdtke, pesquisador responsável por conduzir a parte brasileira do estudo, afirma que esta fragmentação das fontes de audiência e receita é regra no ambiente digital.
“Se a gente puder fazer uma visão ampla desse universo, o que me parece é que os veículos vão se tornar mais nichados ou especializados num tema, numa localidade ou num tipo de conteúdo. Vão buscar mais a relevância, para se tornarem a principal referência nesses grupos, nessa comunidades de interesse, e assim conseguir apoio”, diz.
A conclusão do pesquisador pode ser vista de uma maneira sistematizada: o reconhecimento pela qualidade na cobertura de um tema ou pela inovação de formatos traz públicos mais leais e dispostos a pagar pelo conteúdo — assim como investidores e anunciantes, além de gerar um valor adicional que possibilita outras formas de geração de receita, como a venda de produtos, o oferecimento de treinamentos e consultorias, ou parcerias com marcas maiores.
Por ora, o que temos?
O ecossistema digital está em constante mutação. Todos os dias surgem novas funcionalidades, tecnologias e possibilidades para inovar na produção jornalística, assim como estratégias para conseguir recursos. Não existe uma fórmula pronta para o sucesso financeiro de iniciativas nativas digitais, mas talvez sua vantagem competitiva esteja justamente na possibilidade de experimentação contínua.
“De uma forma geral, o que os distingue é o tom de voz, e, em muitos casos, uma postura mais aberta para experimentar e cometer erros e também para entrarem em iniciativas colaborativas. Tudo isso ajuda a fortalecer o ecossistema inovador, principalmente a experimentação e a colaboração”, analisa Adriana Garcia, fundadora do Orbital Mídia e Teaching fellow no Google.
Referência nos estudos de Design Thinking e empreendedorismo para o jornalismo, Garcia cita dois exemplos de colaboração que impulsionaram o desenvolvimento e a relevância de nativos digitais no Brasil: o Comprova, coalizão entre 24 veículos de comunicação para a checagem de informações enganosas sobre políticas públicas do governo federal, e o Festival 3i, primeiro evento no continente voltado especialmente para a inovação e o empreendedorismo no jornalismo digital.
O Comprova uniu veículos tradicionais e também nativos digitais com o objetivo de amplificar o jornalismo de qualidade e conter a onda de notícias falsas. Já o Festival 3i, já na segunda edição, é uma iniciativa organizada exclusivamente por veículos nativos digitais que funcionam como um ponto de encontro para que organizações contem suas experiências e disseminem boas práticas do setor.
Apoio e parcerias
As iniciativas têm em comum o fato de contarem com suporte financeiro de dois gigantes da tecnologia. Tanto o Google quanto o Facebook têm investido em projetos de aproximação com o jornalismo. Nos últimos anos, as redes sociais se tornaram uma fonte importante de acesso à notícias, fato que levantou o debate sobre qual sua responsabilidade sobre o conteúdo que circula em suas plataformas.
Ao mesmo tempo em que estas empresas facilitam o acesso à informação, elas também favorecem a disseminação de conteúdo noticioso duvidoso, que não seguem os princípios éticos do jornalismo. As chamadas “fake news” foram destaques no Brasil nos últimos anos. Alvo de críticas sobre o assunto, o Facebook fez uma mudança em seu algoritmo em 2018 com o objetivo de dar menos destaque a conteúdos jornalísticos na plataforma. A decisão impactou significativamente a distribuição de notícias de veículos de jornalismo profissional.
Diante deste cenário e da fragmentação da receita publicitária do jornalismo nessas plataformas digitais, a aproximação das empresas de tecnologia com a indústria jornalística foi um caminho lógico.
A empresa de Mark Zuckerberg lançou o Facebook Journalism Project, frente que promove treinamentos e se aproxima de jornalistas e empreendedores com o objetivo de combater a desinformação na plataforma e melhorar a qualidade do jornalismo.
De forma similar, a Google News Initiative atua em três frentes principais: elevar a qualidade do jornalismo, evoluir modelos de negócio e empoderar jornalistas e empreendedores. A companhia anunciou em 2018 um investimento de US$ 300 milhões em iniciativas no setor ao longo de três anos. Parte deste recurso vai ser alocado no Innovation Challenge, projeto que vai fomentar projetos inovadores de jornalismo no Brasil.
O apoio de fundações filantrópicas, entidades privadas ou editais governamentais configura uma fonte de financiamento relevante para nativos. Entre algumas das fundações reconhecidas neste meio estão a Fundação Ford, a Open Society Foundation, o Grupo Omidyar, além das próprias empresas de tecnologia.
“O Google é um defensor inveterado da liberdade de expressão, então o que fazemos é: se tem muito conteúdo ruim na web, a gente precisa inundar esse ecossistema de conteúdo bom. Uma forma de fazer isso é envolver vários produtores de conteúdos, dar acesso à tecnologia e treinamento”, explica Marco Túlio Pires, coordenador do Google News Lab no Brasil.
Este tipo de suporte financeiro levanta debates a respeito da independência editorial do veículo apoiado. “Se são fundações orientadas para o desenvolvimento social, da democracia, se isso faz parte dos princípios vetores dessas organizações, esses investimentos são perfeitamente lógicos”, explica o pesquisador Ramón Salaverría, da Universidade de Navarro (Espanha). O especialista em jornalismo digital acredita, entretanto, que deveria ser um modelo de sustentação de curto prazo. “Se uma fundação vai estar fornecendo apoio durante décadas a um projeto, aí eu já começaria a suspeitar”, conclui.
Há ainda projetos que recebem aporte de amigos/parentes próximos ou investidores particulares. Nestes casos, a iniciativa depende fortemente da confiança do apostador na prosperidade do negócio. Lançado em outubro de 2019, o nativo digital Vortex teve sua operação em São Paulo encerrada após um mês de funcionamento, contabilizando 11 funcionários demitidos. Em seu twitter, o fundador Diego Escosteguy justificou o fechamento dizendo que ” houve uma divergência com os investidores estrangeiros”. Outro caso de recuo de investidores é o do BrioHunter.
Comunidades leais
Conseguir públicos leais é um dos principais caminhos citados por especialistas para se conseguir sustentabilidade no empreendedorismo digital. A ideia está por trás de modelos de sustentação tipicamente explorados por nativos digitais, como as assinaturas, as doações ou a venda de produtos.
A aproximação com o público vem ganhando contornos mais definidos com o modelo de financiamento conhecido como membership. Cada vez mais presente entre as iniciativas digitais, a prática tem como referência o site holandês De Correspondent, que desembarcou também nos Estados Unidos em 2017. O veículo está por trás do projeto The Membership Puzzle, iniciativa que atua em pesquisas sobre a temática e ajuda jornais a adotarem modelos de financiamento por associação. No Brasil, o Aos Fatos, veículo nativo digital especializado em fact-checking, é um dos apoiados pela iniciativa.
MEMBERSHIP: O Membership ou “programas de associação” é um modelo de financiamento em que leitores pagam para se tornarem associados a um veículo jornalístico. Além do acesso irrestrito à produção jornalística, os membros são convidados a participar ativamente de processos internos do veículo. Na associação, há um “contrato” diferente entre o site e seus apoiadores. Não se trata apenas de pagar uma taxa de assinatura para ter acesso ao conteúdo jornalístico: membros se unem à causa de um jornal pois acreditam em seu potencial de transformação social. Do outro lado, mutualisticamente, esse veículo segue um modelo de negócio centrado nos interesses de seus membros. O conceito de membership ainda é relativamente recente nos estudos de financiamento jornalístico. Do mesmo modo, sua aplicação se dá de forma inconstante e experimental ao redor do mundo. De maneira geral, organizações que utilizam programas de associação absorvem o conhecimento especializado de seus usuários em troca de conteúdo e da construção de uma comunidade. Os usuários podem contribuir com feedbacks sobre os conteúdos produzidos, sugestão de pautas ou fontes e até mesmo colaborar ativamente em projetos de design e programação. Já os veículos podem, por exemplo, oferecer eventos e encontros exclusivos para membros, cursos de capacitação ou abrir canais diretos de comunicação e feedback entre jornalistas, diretoria e associados. |
“Onde está o caminho sustentável? Parece cada vez mais provável que os leitores que valorizam o serviço público da imprensa terão que sustentá-la sozinhos – contribuindo com dinheiro, compartilhando conhecimento e divulgando suas reportagens” (Tradução Livre), descreve o The Membership Puzzle na apresentação do projeto.
Outro modelo que se baseia na construção de comunidades de apoiadores é o financiamento coletivo. O crowdfunding ganhou força entre iniciativas jornalísticas brasileiras à partir de 2011, com o nascimento do Catarse, plataforma na qual os empreendimentos podem lançar campanhas de arrecadação financeira. Segundo dados disponibilizados pelo site, existem hoje 102 projetos de jornalismo com campanhas abertas, e mais de R$400.000 são distribuídos mensalmente a elas.
CROWDFUNDING: Financiamento coletivo/crowdfunding é um modelo de doação em que usuários investem recursos financeiros em uma iniciativa através de uma plataforma digital própria e colaborativa, em uma espécie de “vaquinha” virtual. Através destes sites, o veículo anuncia uma campanha de captação financeira, especificando seus objetivos, o tempo hábil para receber o apoio e o valor que almeja alcançar. O usuário então deposita um valor que pode ser livre ou previamente estipulado. Ele se torna uma espécie de patrocinador do projeto. Para viabilizar a transação, essas plataformas cobram do anunciante uma porcentagem do valor arrecadado. Existem diversas iniciativas que vendem a possibilidade de efetivar uma campanha de financiamento coletivo. No Brasil, um dos sites mais utilizados para campanhas de crowdfunding é o Catarse. Algumas plataformas exigem que o empreendedor obtenha toda a quantia inicialmente proposta (do contrário, devem devolver todo o dinheiro arrecadado). Outras permitem que os proponentes fiquem com o dinheiro, independentemente de quanto conseguirem arrecadar. É comum, também, que os colaboradores recebam alguma contribuição por seu apoio, seja um produto, como uma assinatura, ou mesmo o seu nome em destaque na lista de financiadores do veículo. O modelo é utilizado tanto em campanhas de lançamento de uma nova iniciativa digital, como para projetos jornalísticos específicos que um veículo já em funcionamento almeja viabilizar. |
Jornalismo como direito, e dever
Mesmo havendo muitas possibilidades de aplicação, as estratégias utilizadas por veículos nativos para se financiar caminham no sentido contrário à simples venda de “informação”, mas no entendimento de que apoiar o jornalismo é necessário para a manutenção de uma sociedade democrática, além de ser uma responsabilidade de toda a população.
É o que explica o pesquisador Rogério Christofoletti, da UFSC: “Vejo esta tendência com muito interesse porque ela dá uma dimensão potencialmente mais comunitária para o jornalismo. Acho que — em escalas menores — podemos investir mais nisso, e fortalecer laços mais permanentes (e não só ocasionais) entre quem faz e quem consome informação, em prol do desenvolvimento de um certo lugar ou comunidade”.
Para Sérgio Lüdtke, o surgimento de veículos digitais sem fins lucrativos também é uma tendência. “Tem coisas que o público não vai ter condição de pagar mas é importante para a sociedade que haja cobertura sobre aqueles temas.” Ele explica que ainda não é possível afirmar que os nativos digitais chegaram, ou estão perto de chegar, a um momento de maturidade de seus modelos de financiamento. ”Muitos deles eles estão fortemente apegados a figura de um fundador, e que se essa pessoa vem a faltar, acaba o negócio. Ou são muito dependentes de uma única fonte de financiamento, se ela seca, ele também se foi”, diz. Entretanto, ele reafirma que o momento atual é propício para se testar novos negócios.
Quem paga a conta?
Entender as estratégias que podem ser utilizadas tornar sustentável o jornalismo digital depende de uma questão prioritária: quem é o público que se espera atingir? O que ele quer desta produção jornalística? Ele está disposto a pagar por esse conteúdo? O perfil deste empreendimento atrai anunciantes relevantes?
Medir o comportamento da audiência sempre foi um desafio para o jornalismo. Sua migração para o ambiente digital seguiu, no princípio, uma lógica quantitativa que culminou em uma “cultura do clique”: a relevância do veículo era medida pelo número de acessos aos seus conteúdos.
Aos poucos, essa lógica começa a dar lugar a uma visão mais qualitativa. É justamente nesse ponto que as mídias nativas podem ter uma vantagem em relação aos veículos tradicionais. Segundo a professora Egle Spinelli, o principal diferencial entre os dois está na capacidade e facilidade que os nascidos no mundo digital têm de inovar em suas estruturas organizacionais, que normalmente são mais enxutas e formadas por profissionais com relevância e expertise no segmento focado pela empresa.
“Essas iniciativas trabalham com equipes interdisciplinares e desenvolvimento de projetos especiais e novos conteúdos, compreendendo o ciclo de vida das notícias, que não termina na divulgação de uma informação e precisa ser monitorado para que exista um acompanhamento da relevância de determinado conteúdo para o público”, afirma a pesquisadora.
Esse monitoramento do retorno dos leitores ganhou nas mídias sociais um aliado importante: o leitor.
O pesquisador Ludtke, editor do projeto Comprova, diz que a reconexão com o público é uma ferramenta essencial para veículos digitais, principalmente em uma época em que a desinformação e os conteúdos falsos estão ganhando espaço e os níveis de confiança na imprensa estão baixos.
“Essa conexão vai ser importante quando eu quiser ter um programa de membership, quando eu quiser abrir uma campanha crowdfunding, quando eu quiser cobrar por assinatura ou usar a consultoria como forma de financiamento. Se eu não olho para aquilo que a audiência tá me dizendo, se eu olho para um número frio, como eu sou capaz de fazer qualquer tipo de consultoria?”, questiona.
Os pesquisadores reafirmam a importância do investimento em equipes multidisciplinares que, além de possuírem uma base editorial sólida , tenham um olhar para o marketing, a inteligência de negócios, a moderação de comentários e o relacionamento direto com a audiência como pontos cruciais para o sucesso de iniciativas nativas.
Uma nova identidade para o jornalista
Por ser um ambiente que dispõe e precisa de diferentes formas de financiamento para ser sustentável, o jornalismo nativo digital exige que as mentes por trás do negócio estejam constantemente pensando em estratégias de venda e geração de valor para sua marca.
“O maior erro que eu vejo iniciativas nativas cometendo é: um monte de jornalista se reúnem e só o que eles querem fazer é jornalismo. E eu gosto de dizer que isso é igual três chefes se unirem e decidirem abrir um restaurante. Alguém tem que organizar. Uma das coisas que aprendemos sobre abrir um modelo de negócios, é que é necessário ter mentes que pensam o negócio no meio, ou um jornalista que decidiu focar em negócios, ou é muito difícil”, afirma Janine Warner, fundadora da SembraMedia.
Mais da metade dos veículos brasileiros pesquisados pelo “Ponto de inflexão” mantinham o trabalho de captação de recursos apenas nas mãos dos fundadores, sem nenhum outro funcionário exercendo esta função. A diferença pode ser significativa: aqueles com ao menos um profissional de vendas reportaram mais de US$ 117 mil em receitas anuais, enquanto aqueles que não tinham ninguém dedicado a isto declararam menos de US$ 3.900.
Os dados revelam como o ambiente digital também impacta na identidade do profissional de jornalismo, que desenvolve a necessidade de interagir mais com o mundo dos negócios para ser bem sucedido em sua iniciativa. Interação, no entanto, que esbarra em uma cultura empreendedora ainda incipiente, e em um ambiente acadêmico que não investe na formação de jornalistas treinados para lidar com ela.
“A gente tem uma parte acadêmica muito atrasada em relação ao mercado, e um mercado muito atrasado em relação ao que é a realidade do público. Uma das coisas que reconheço muito em todos os estudos que eu fiz, é a dificuldade que o jornalista tem de criar relações com outras competências”, afirma Lüdtke.
Notando a lacuna entre a formação dos profissionais e o que este novo mercado informativo digital demanda, a SembraMedia conduziu um novo estudo sobre o ensino do jornalismo empreendedor. O projeto “Ponto de Partida” traz dados e entrevistas com professores que lecionam esta temática em 14 países.
O estudo revelou, por exemplo, que na América Latina só 2,82 % das 1.700 universidades de jornalismo e comunicação analisadas ofereciam aulas de empreendedorismo em suas grades curriculares. Em seu site, a organização disponibiliza ferramentas que podem ser adotadas por professores que querem começar, ou aperfeiçoar aulas com sobre a temática.
Um caminho para o profissional que já se lançou no empreendedorismo digital ou está pensando em fazer isso, por sua vez, é investir em cursos e aplicar para alguns programas de treinamento e consultoria oferecidos por organizações dedicadas à formação de jornalistas. A SembraMedia, em um projeto conjunto com a Google News Initiative, selecionou nove veículos digitais de países da América Latina que foram fundados por mulheres para um programa de mentoria focada em negócios. Em outubro de 2019, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), apoiada pelo, Facebook Journalism Project, lançou um curso online gratuito sobre jornalismo local que tem um módulo dedicado inteiramente à questão do jornalismo economicamente sustentável.
Para começar a pensar na sustentabilidade do negócio
Mesmo sem fórmula pronta, o ponta pé inicial para quem pensa em empreender pode estar no olhar especializado sobre um tema, na capacidade de se apropriar dos recursos digitais para inovar a produção jornalística, no investimento em aproximação com a audiência e em um direcionamento mais atento ao mundo do negócio. Isso, é claro, somado a uma estratégia de sustento financeiro eficiente e diversificada. A máxima da “tentativa e erro” é base fundamental para o jornalismo nativo digital.